domingo, 22 de agosto de 2010

OLHOS DE POETA

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio, aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é alegria! Aconteceu, entretanto, faz uns dias, que eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal, sem surpresas. Entretanto, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E piro é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo meu causa espanto...” Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui até a estante de livros e de lá retirei as Odes elementales, de Plabo Neruda. Procurei a Ode à cebola e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘...rosa de água com escamas de cristal...’ Não, você não está ficando louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver”. Fiquei mordido de curiosidade. Cheguei em casa à noite (todo mundo já estava dormindo), fui à cozinha, escolhi uma cebola robusta e cortei uma fatia, no sentido vertical, que fica com o formato de um pingo d’água. Coloquei a fatia num prato e cuidadosamente “pinguei!” o pó de colorau no centro da fatia. O centro ficou com um vermelho forte que se foi espalhando, assumindo o formato da chama de uma vela.

TEXTO: RUBEM ALVES

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